Tenho sobre a minha mesa de canto all’aperto1 (como gosto de mesclar palavras e expressões das minhas duas línguas de fluência, o português e o italiano, a minha rotina! É uma forma de sintetizá-las numa só coisa, o meu eu real, a configuração amorfa do que sou enquanto um ser em constante expansão) cerca de duas dezenas de livros, referências de uma vida “pré” graduação e especializações várias. Me preparo para um estudo de caso que validará mais um diploma ao rol das coisas que vira e mexe me proponho a aprofundar-me – ou abrir sob meus pés um abismo de questionamentos profundos, quiçá sem respostas, que, como curiosa intensa e exploradora de mundo, me dedico numa corrida sem fim. Em tais exemplares, o assunto, se sintetizarmos, pontua-se, sempre nas recônditas zonas do espírito humano: das codificações de mundo que criamos à ideia da extinção das nossas mortes, passando pelas transformações dos desenhos das cidades e por nossas interações com artefatos e com as nossas casas, reflexo material do que pensamos e do modo como agimos – consequente demonstração de como o desenho urbano atua sobre nossas atitudes.
Um destes exemplares, publicado em 1967, foi presente de meu pai (como sempre, em tudo na minha vida, ele me presenteou com referências de todas as formas possíveis – e como me tornei essa parte dele, que agora me acompanha em espírito já que não é mais possível tê-lo fisicamente). “A crise das cidades”, de Wolf von Eckardt com prefácio do então administrador de recreação e assuntos culturais da Cidade de Nova York, August Heckscher, é um marco na minha existência, pois, além de me batizar como a cronista que sou (Bia Mies nasceu de um ‘apelido’ extraído do meu nome “oficial”, Nú Bia, acrescido de um “pseudo sobrenome”, Mies2, originado do nome de um dos arquitetos que mais aprecio, o Mies Van der Rohe, que conheci através das páginas deste livro), reforçou minha escolha pela graduação em Arquitetura e Urbanismo, numa época em que as dúvidas me jogavam para o jornalismo, para as artes cênicas e para essa inenarrável responsabilidade e comprometimento de vida que é titular-se arquiteta e manter-se firme em tal posição com todas as provações da vida profissional. Reforçarei uns recortes do prefácio, que julgo ser de interesse educacional geral:
(…) Aliás, a influência da Arquitetura sobre nossa vida – Arquitetura
compreendida nos termos mais amplos, incluindo o planejamento e
preocupação com o ambiente total – pode ser tão grande que
quase ficamos estarrecidos com as responsabilidades que cabem a
essa profissão. Não faz muito tempo, bastava que o arquiteto
tivesse a habilidade de desenhar prédios individuais, elegantes ou
utilitários, conforme o caso. Agora, ele concebe e planeja cidades e
regiões e pensa em termos da filosofia do homem e dos seus
valores fundamentais. Portanto, é essencial que se desenvolvam
bons críticos de Arquitetura (…) Também é indispensável que o
público possa compreender plenamente o que o arquiteto está
procurando fazer. (…) também falar sobre limites num sentido mais
exato – o ponto além do qual os arquitetos não podem ir sem ousar
fazer o trabalho de estadistas – ou mesmo de deuses. (…) este livro
deixa claro, o arquiteto não é apenas um construtor; ele também é
um artista e, como artista, arca com o peso da profecia e da
compulsão por nos dizer o que é o bem-viver.”
A crônica de hoje começa quase biográfica, mas hei de traçar o paralelo com o todo, fora de mim: se compreendemos o mundo a partir de uma leitura pela íris de nossas bagagens pessoais de experiências, todos os textos são um tanto quanto biográficos, mas ao passo que se transformam em publicação, destinam-se aos que os leem, e, portanto, tornam-se públicos, sem domínio direto de seu conteúdo, um descolamento do pessoal por trás da escrita. Enquanto a minha vida assemelha-se cada vez mais ao
casamento entre uma esponja e um liquidificador, tento gerar filhos que sejam produtos das receitas que pelos seus progenitores se misturem, e assim, ser crítica, ser artista, ser técnica e ser humana, colocando-me a serviço da sociedade, em tempo integral. Habilidade ou loucura?
Uma busca constante, um eterno esforço a caminho de algo que nunca chega; é sobre o tempo que eu gostaria de dissertar: o que somos, não basta. O presente é constantemente tratado como o momento em que devemos viver; mas a condição humana que nos difere dos outros animais é ter a noção da finitude. E seria essa uma habilidade adquirida com a educação? De quando passamos da fase em que tudo é plena novidade e tentamos nos comunicar através de gestos, sorrisos, choros ou sons incipientes e sem nexo, Kairós é derrotado por Chronos, dois deuses da mitologia grega que simbolizam, em breves palavras, o tempo eterno – sem quaisquer referências ao passado ou futuro, sinônimo de qualidade – e o tempo cronológico e implacável – passagem do tempo, o presente constante que esquece de si mesmo,
sinônimo de quantidade.
Se cada um de nós é formado, independente do seu grau de instrução – basta viver em sociedade -, para agir, adquirir, aprender e tantos outros verbos de A a Z, como é que conseguimos dar conta de puramente ser, no fim das contas? Na filosofia é comum aproximar ambos os deuses à ideia do estado de flow, esse tempo distorcido da realidade que nos permite ter espaço para a consciência. O que somos não basta, repito. Se temos um intenso contato conosco, somos, provavelmente, improdutivos. Se não produzimos, somos excluídos; se produzimos elevamo-nos a um estado de esforço profundo que afrouxa as presilhas da nossa identidade. Mas todos esses esforços em favor da vida levam-nos à morte. E a morte é o que devemos combater, acima de qualquer coisa. Então construímos sociedades, cidades, casas, famílias, seres humanos. Quantidades. E nos baseamos em leis – palavras formuladas para ‘um todo’, acessível universalmente à ideia imperativa do que seja isso, a cada época -, que procuram ser democráticas, mas que excluem. Ontem assisti a um filme contemporâneo do cinema italiano intitulado Nata per te3, que narra a história verídica de um jovem homossexual católico que tenta adotar uma bebê com síndrome de Down (disponível a todo público brasileiro pelo link CLIQUE AQUI do Festival de Cinema Italiano até 08 de dezembro). Na prática, o abandono de um ser deveria ser julgado com mais profundidade do que a tentativa de criá-lo, com todos os percalços que a vida irá impor – além da dialética Kairós e Chronos, obviamente. Mas percebe-se como o peso das culturas, construções humanas de grupos, e as leis são de maior relevância do que a vida, em si. Como nossas habilidades são poderosas demais perante o que realmente é de vital importância. Quantidade ou qualidade? Como é a verdadeira face do tempo se nos vestirmos com qualidades reais, uma roupagem de amor, a nós mesmos e aos próximos, nossas habilidades qualitativas? O que somos, não basta?
Minha pilha de livros tende sempre a aumentar; eu não sei basear-me em pouco para ser uma pessoa só. Culpa do tempo (in)visível que nos molda, culpa dos meus pais, que fizeram o melhor frente ao que a sociedade sempre os impôs. Culpa de ser humana, imperfeita e performática. Culpa da arte pela qual extravaso meus dilemas, e com a qual as coisas – palavra mais significativa e influente deste tempo – nos vulgarizam.
Termino com a tradução e letra original da música Il mio canto libero4, de Lucio Battistini, que foi base do filme aqui comentado (e cujo link do QR CODE).
Em um mundo que
In un mondo che
Não nos quer mais
Non ci vuole più
O meu canto livre é você
Il mio canto libero sei tu
E a imensidade
E l’immensità
Se abre ao nosso redor
Si apre intorno a noi
Além do limite dos seus olhos
Al di là del limite degli occhi tuoi
Nasce o sentimento
Nasce il sentimento
Nasce em meio aos prantos
Nasce in mezzo al pianto
E se levanta bem alto e vai
E s’innalza altissimo e va
E voa sobre as acusações das pessoas
E vola sulle accuse della gente
Sobre todos os seus legados indiferentes
A tutti I suoi retaggi indifferente
Apoiado em um anseio de amor
Sorretto da un anelito d’amore
De verdadeiro amor
Di vero amore
Em um mundo que – Pedras um dia casas
In un mondo che – pietre un giorno case
Prisioneiro é – recobertas pelas rosas selvagens
Prigioniero è – ricoperte dalle rose selvatiche
Respiramos livres eu e você – revivem, nos chamam
Respiriamo liberi io e te – rivivono ci chiamano
E a verdade – Bosques abandonados
E la verità – boschi abbandonati
Se oferece nua a nós e – por isso virgens sobreviventes
Si offre nuda a noi e – perciò sopravvissuti vergini
E límpida é a imagem – abrem-se
E limpida è l’immagine – si aprono
Agora – nos abraçam
Ormai – ci abbracciano
Novas sensações
Nuove sensazioni
Jovens emoções
Giovani emozioni
Exprimem-se puríssimas
Si esprimono purissime
Em nós
In noi
A roupa dos fantasmas do passado
La veste dei fantasmi del passato
Caindo deixa o quadro imaculado
Cadendo lascia il quadro immacolato
E se levanta um vento quente de amor
E s’alza un vento tiepido d’amore
De verdadeiro amor
Di vero amore
E te redescubro
E riscopro te
Doce companhia que
Dolce compagna che
Não sabes pedir, mas sabes
Non sai domandare ma sai
Que aonde quer que irás
Che ovunque andrai
Ao teu lado me terás
Al fianco tuo mi avrai
Se tu o queres
Se tu lo vuoi
Pedras um dia casas
Pietre un giorno case
Recobertas pelas rosas selvagens
Ricoperte dalle rose selvatiche
Revivem
Rivivono
Nos chamam
Ci chiamano
Bosques selvagens
Boschi abbandonati
E por isso virgens sobreviventes
E perciò sopravvissuti vergini
Se abrem
Si aprono
Nos abraçam
Ci abbracciano
Em um mundo que
In un mondo che
Prisioneiro é
Prigioniero è
Respiramos livres
Respiriamo liberi
Eu e você
Io e te
E a verdade
E la verità
Se oferece nua a nós
Si offre nuda a noi
E límpida a imagem
E limpida è l’immagine
Agora
Ormai
Novas sensações
Nuove sensazioni
Jovens emoções
Giovani emozioni
Exprimem-se puríssimas
Si esprimono purissime
Em nós
In noi
A roupa dos fantasmas do passado
La veste dei fantasmi del passato
Caindo deixa o quadro imaculado
Cadendo lascia il quadro immacolato
E se levanta um vento quente de amor
E s’alza un vento tiepido d’amore
De verdadeiro amor
Di vero amore
E te redescubro
E riscopro te
1 = ao ar livre, tradução da autora.
2 Mies é um real sobrenome; através do Crônicas Cariocas, em 2008, “ingressei” para a família Mies
através do querido Paulo (saudosos abraços, espero que conheça meu pai aí no céu), que me encontrou
através dos meus textos neste nosso portal Crônicas Cariocas e me enviou mensagens perguntando se
éramos parentes próximos.
3 “Nascida para você”, versão do título da película em português.
4 O meu canto livre
Um texto incrível, com um peculiar jeito de escrever. Sempre me pergunto o que virá no próximo!
Que texto incrível! Você transita entre o íntimo e o universal com uma fluidez ímpar, costurando suas vivências ao tecido maior das cidades, das leis, das relações humanas. Como sempre, uma leitura que inspira e envolve, como quem nos convida a caminhar por dentro de si e do mundo ao mesmo tempo.